Edição 1 – julho 2017
ÚTERO LIVRE
ZINE FEMINISTA LATINA-AMERICANA
N.1 – julho 2017 (VERSÃO REEDITADA)
LÉSBICAS E FEMINISTAS PELO DIREITO À INFORMAÇÃO – Brasil
Conteúdo completo da edição:
– O que é o aborto?
– Por que apoiamos às mulheres que decidem abortar?
Quando se reivindica a legalização do aborto, estamos falando de dar a possibilidade às mulheres de optarem, caso desejem, por interromper a gravidez durante o período em que o embrião ou feto não seja viável, fora do corpo da mulher.
A legalização envolve também a construção de políticas públicas para que as mulheres, de diferentes idades, possam exercer sua autonomia reprodutiva, através de educação sexual, informações e acesso a métodos contraceptivos de sua escolha.
Em muitos países, onde o aborto é legalizado, o período para a interrupção é de 12 semanas, sendo permitida a interrupção com um tempo maior para casos específicos. Entre a 10ª e 12ª semanas, o embrião se transforma em feto. Até a 20ª semana, o feto ainda não possui um sistema nervoso.
Dicas para quando precisar falar sobre aborto
Infelizmente, o aborto ainda carrega muito estigma devido à discriminação da sociedade, das religiões e do Estado. É importante evitar que você e as pessoas que te ajudam fiquem expostas à criminalização. Medidas de comunicação segura também são importantes para a segurança e fortalecimento de nossos movimentos!
– NÃO USE o celular, Facebook, Whatsapp, emails como Gmail, Hotmail ou Yahoo;
– Fale pessoalmente com as pessoas, use aplicativos e emails criptografados, como o Riseup, o chat secreto do Telegram e o Signal;
– Não mencione diretamente nomes de pessoas ou organizações. Se possível, tente utilizar outros nomes para se referir ao aborto.
Algumas perguntas sobre aborto
- É preciso recorrer a uma clínica?
De acordo com pesquisas e relatos das mulheres, fazer um aborto com remédios em casa, seguindo as instruções corretas, é a forma mais segura para uma mulher acessar o aborto, em contextos de clandestinidade. Dessa forma, é possível escolher um local para a sua realização, seja na sua casa ou na casa de conhecidas/os.
A supervisão médica não é necessária , o que te dá maior autonomia e diminui nossa dependência do mercado clandestino de serviços de aborto. A supervisão médica é indicada para gestação de mais de 12 semanas, e em condições especiais de saúde.
- Se eu tomar somente 4 comprimidos de misoprostol, o aborto será bem sucedido?
Infelizmente, ainda é pouca a informação segura que circula sobre o uso do misoprostol. Isso propicia a criação de mitos sobre como utilizá-lo na hora de induzir um aborto seguro.
É importante entender que seguir o protocolo À RISCA te garante não só a efetividade da interrupção, como o uso do medicamento em segurança. Por isso, é importante concluir todo o procedimento (com 12 comp.) mesmo se após tomar as primeiras doses, surjam alguns efeitos iniciais.
- Há efeitos psicológicos?
Não há comprovação científica de que o aborto cause efeitos psicológicos negativos. Acreditamos que POSSÍVEIS efeitos vêm do contexto de violência, estigmatização e criminalização das mulheres, quando o aborto não é legalizado.
Cada mulher vive o aborto de sua maneira e apesar dos sentimentos negativos que são estimulados pela sociedade às mulheres que abortam, nem sempre nos sentimos culpadas.
Às vezes, encaramos a realização de um aborto como a única solução para enfrentar a situação. Mulheres de diferentes religiões abortam. Isso não deve afetar negativamente sua experiência espiritual ou fé, seja ela qual for. Ninguém tem o direito de alegar isso!
O que precisa saber para um aborto seguro com comprimidos?
- Confirme se há mesmo gravidez. Faça teste de farmácia, ultrassom ou exame de sangue.
- Confirme o tempo de gestação. IMPORTANTE: o tempo de gestação é contado a partir do 1º dia da sua última menstruação – quando seu corpo inicia um novo ciclo. O tempo de gestação NÃO é contado a partir do ato sexual.
- Confirme se é uma candidata a utilizar o medicamento. Ele NÃO é recomendado quando:
– a gravidez é ectópica (ocorre fora do útero. Os sintomas geralmente são caracterizados por uma forte dor em apenas um dos lados do baixo ventre),
– o período da gravidez é maior do que 12 semanas,
– realizou uma cesárea há menos de 6 meses,
– possui forte anemia, e/ou problema de coagulação sanguínea,
– tem infecção vaginal e ou urinária. Nesses casos, tratar a infecção antes de usar o medicamento.
Se você utiliza DIU, deve retirá-lo antes de usar o medicamento.
Se você não corresponde a essas condições, pode utilizar o medicamento, conforme o protocolo indicado pela Organização Mundial da Saúde, descrito abaixo. O protocolo, se seguido corretamente, tem eficácia de aproximadamente 85%.
Se você possui alguma dessas características, não podendo portanto seguir esse protocolo, você pode pesquisar protocolos alternativos nos sites que indicamos no fim dessa publicação.
Procedimento com Misoprostol (nome comercial Cytotec):
4 comprimidos + 4 comprimidos + 4 comprimidos. Total de 12 comprimidos (200 mcg cada).
Colocar 4 comprimidos de misoprostol debaixo da língua e deixar dissolver durante 30 minutos. Engolir o resto.
3 horas depois volte a colocar mais 4 comprimidos debaixo da lingua e deixe dissolver por 30 minutos. Engolir o resto. Passadas 3 horas, volte a usar o resto dos comprimidos, colocando debaixo da língua e deixando dissolver durante 30 minutos. Engula o resto.
NÃO precisa estar em jejum. Deve se alimentar antes, durante e depois do procedimento.
IMPORTANTE: Os comprimidos NÃO devem ser tomados por vias diferentes, para não perder eficácia.
Esses sintomas são normais durante o procedimento e devem ir diminuindo nas horas seguintes:
– cólicas e sangramento um pouco mais fortes que uma menstruação. Observe a cor e o cheiro. Ele deve ser parecido a quando você menstrua.
– possibilidade de diarréia, vômitos e estado febril até 38ºC.
– o sangramento e cólica vão diminuindo ao longo dos dias.
Pode tomar IBUPROFENO para cólicas. NÃO use anti- espasmódicos como Buscopan.
– Caso tenha diarréia pode tomar LOMOTIL, após a primeira evacuação líquida e repetir, caso continue a evacuar líquido. Não fazer uso em excesso.
– Para enjôo forte, pode utilizar algum medicamento que auxilie nesse sintoma.
– Você também pode tomar chá de camomila, orégano e usar bolsa quente para alívio dos sintomas.
Em países onde o aborto é criminalizado, as mulheres devem EVITAR a via vaginal para que não fiquem vestígios que possam incriminá-las no caso de recorrerem a um hospital.
Esteja atenta a sinais de complicação como:
– febre prolongada (38º por mais de 24h) ou febre alta (39º ou mais) a qualquer momento.
– sangramento em excesso: se você atingiu 2 absorventes maxi em 1 hora e na hora seguinte, mais 2 absorventes, esse pode ser um sinal de hemorragia,
– sangramento com cheiro forte, o qual você não está acostumada a ter,
– cólicas intensas prolongadas. Elas devem diminuir após o procedimento.
Se possível, busque estar acompanhada de alguém que te apoia e compartilhe essas informações com ela.
Descubra uma emergência que fique no máximo a 30 minutos de distância e deixe planejado como chegar até lá, caso necessite.
Se o medicamento for utilizado inteiramente via oral, NÃO há como descobrir através de exames que a mulher usou o Misoprostol. Os seus efeitos são os mesmos que o de um aborto espontâneo.
O atendimento às mulheres em processo de abortamento em unidades de emergência é direito e está previsto na Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, do Ministério da Saúde.
Conforme previsto em nossa constituição, a/o profissional de saúde que romper o sigilo médico e comunicar o fato às autoridades ou Ministério Público é passível de processo criminoso, ético-profissional e civil.
O sigilo e a assistência médica são previstos para adolescentes, conforme previsto no Estatuto da Criança e Adolescente.
A humanização e qualificação do tratamento aos casos de abortamento às mulheres negras é prevista pela Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, mecanismo com efeito de orientação e cobrança à gestão das políticas de saúde.
Como saber se um aborto foi bem sucedido?
– os sinais de gravidez vão desaparecendo,
– é recomendável fazer um ultrassom após 15 dias para verificar se não ficaram restos no útero (antes disso, a probabilidade de o útero já estar totalmente limpo é reduzida e podem encaminhá-la para curetagem desnecessariamente).
Para a mulher que aborta: amor, força, carinho, descanso, compreensão, respeito!
Cuidados pós-aborto nos 15 dias após o procedimento:
– não introduzir nenhum objeto no canal vaginal e nem ter relações sexuais. Não introduzir o dedo, não usar absorvente interno.
– não tomar banho de mar ou piscina.
– evitar carregar peso.
É IMPORTANTE TER EM MENTE…
Que a fertilidade retornará logo após o uso do misoprostol, em aproximadamente 8-10 dias, após o procedimento. Por isso, caso haja relação sexual sem proteção é possível que ela resulte em gravidez.
Mulheres contam…
“Se você perguntar para mim se eu pegasse um filho agora, se eu ia tirar: ia tirar! Por quê? Porque eu não quero passar aquela situação (econômica e profissional) que passei antes. Porque agora eu to trabalhando, tenho uma pessoa que me ajuda, mas eu tiraria.”
Depoimento de mulher entrevistada no documentário “O Aborto dos Outros”.
“Culpa de ter feito o aborto? Eu nunca tive. Porque eu penso que se for pecado, Deus há de me perdoar. A situação (de violência sexual por parte do marido) que eu me encontrava, naquele momento, não era para eu ter o filho. Um filho que não seria de uma relação de amor.”
Depoimento de mulher entrevistada no documentário “O Aborto dos Outros”.
“Eu não ia ter um filho somente porque me disseram: é sua obrigação como mulher carregar um filho. (…) O que acontece no sistema público é que você passa por um interrogatório e é colocada embaixo de um holofote de: porque diabos você está fazendo isso? E só faltam te dizer que é uma criminosa. Todo mundo pode ter crença. Mas as pessoas têm que parar de partir só da própria opinião e olhar para outras pessoas… Para o sentido do coletivo, da cidadania e do direito.”
Depoimento de mulher durante o documentário “Clandestinas”.
“Absolutamente ninguém me perguntou o porquê eu estava tendo um aborto. Eu preenchi a papelada na sala de espera. Eu fiz um ultrassom na clínica para determinar a localização e o tempo da minha gravidez. A enfermeira que estava realizando a ultrassonografia disse: Mantenha sua cabeça virada para o lado, na minha direção. A médica aspirou o meu útero. Ela falou suavemente.
Depois, eu descansei em uma pequena cama na sala de recuperação durante uma hora enquanto a anestesia passava. Eu usei um absorvente do tamanho de um tijolo. Quando eu estava acordada o suficiente, e a enfermeira achou que eu não estava sangrando exageradamente, voltamos para casa.
Eu nunca me senti como se eu deveria dizer: “Eu fiz um aborto porque” ou “Eu tive que fazer um aborto porque”. Eu só disse: “Eu abortei”.”
Depoimento de Katie Lew sobre sua experiência em contexto de legalização no Canadá, GUTS Magazine.
“Meu pai aceitou muito mal por ele ser espírita. Então, ele acha que eu vou ter consequências divinas por conta do meu aborto. Mas não é um tabu falar disso pra mim. Eu só não tô olhando para a câmera, porque, infelizmente, isso é proibido no Brasil.”
Depoimento de mulher no site Aborto: sim ou não?.
Algumas experiências das mulheres sobre o aborto pela América Latina:
Temos uma diversidade de experiências em nossa região quando se trata de aborto. Na América Latina, o aborto é legalizado no Uruguai, em Cuba e na Cidade do México (porém não em todo o território mexicano).
No Uruguai, por exemplo, a legalização começou em 2012, com a Lei de Interrupção da Gravidez. É uma grande conquista para as mulheres uruguaias, apesar dos limites que ja vêm sendo apontados com cinco anos de existência.
Algumas questões relativas à maioria de médicas/os que alegam objeção de consciência e por isso, travam a realização dos procedimentos. Sem falar das restrições do própio desenho da lei, que muitas feministas uruguais alegam também.
A lei exige que as mulheres passem por uma comissão interdisciplinar frente a qual as mulheres têm que dar explicações sobre o aborto que querem fazer.
Esperam alguns dias até receber o parecer sobre o procedimento e somente aquelas que moram no país há um ano podem realizar um aborto na rede pública.
Na Cidade do México, os movimentos feministas, de juventudes e direitos sexuais e reprodutivos, junto a organizações sociais e outras atrizes da sociedade civil trabalharam muito discutindo e mobilizando toda a sociedade mexicana até conseguir as reformas no Código Penal e de Saúde, que instauraram o sistema de Interrupção Legal da Gravidez, em 2007.
Em países como Equador, Argentina, Peru, Chile e Venezuela, em que o aborto não é legalizado, há vários grupos e iniciativas de feministas e lésbicas que vêm se organizando para garantir condições mínimas para as mulheres acessarem o aborto seguro, através de linhas telefônicas, redes de apoio e acompanhamento de mulheres e difusão de informações seguras. Essa também acaba sendo uma forma de pautar o aborto, pois visibiliza que as mulheres abortam, independente de ser legal ou ilegal.
Misoprostol
O Misoprostol é um remédio que as mulheres usam para abortar. Este remédio provoca contrações e faz com que se expulsem os tecidos formados durante a gravidez: sangue, coágulos, e o saco gestacional. Ele também é usado para tratamento de úlceras.
O aborto com misoprostol foi descoberto por mulheres pobres no Brasil e na América Latina. Seu uso, através do protocolo compartilhado nessa zine, é indicado pela Federação Latino Americana de Sociedades de Obstetrícia e Ginecologia (FLASOG) e pela Organização Mundial da Saúde.
O Misoprostol, corretamente, utilizado em suas indicações ginecológicas e obstétricas precisas, nas doses, vias e intervalos de administração correto, tem um enorme potencial para reduzir complicações e mortes de mulheres.
Não existe evidência científica que fundamente o excessivo rigor no controle da compra e uso do misoprostol.
EM TODO O MUNDO, ele é usado para abortar, para parir, para expulsar tecidos depois de um aborto ou parto, para evitar hemorragias depois do parto.
Fique atenta na hora de comprar! Muitas pessoas que dizem vender o remédio se aproveitam da restrição do Misoprostol no Brasil e da necessidade das mulheres para vender comprimidos caros, e muitas vezes, falsos. Desconfie de vendedores/as pela internet! Muitos/as deles/as, após receberem o pagamento na conta, não enviam os comprimidos.
Procure comprar de contatos de conhecidos/as. De preferência, de fontes já utilizadas por outras mulheres!
O que propomos
Lutar coletivamente pelo acesso ao aborto livre e seguro para todas as mulheres! Essa luta envolve muitas ações praticadas pelas mulheres há muitos anos. Algumas delas são:
– A luta pelo aborto legal como serviço público e com atendimento especializado às mulheres e suas identidades de raça/etnia, geracionais e sexuais.
– O acesso à educação sexual desde a perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos nas escolas, bem como o acesso a serviços públicos que reflitam a laicidade do Estado, ou seja, a não interferência religiosa no estado.
Queremos acessar informação segura e livre de opressão sobre os direitos sexuais e reprodutivos e que chegue até nós o acesso aos métodos contraceptivos. Que possamos escolher livremente entre eles!
– A existência de redes de acompanhamento para mulheres em situação de aborto, de redes de apoio para construir e divulgar conhecimento, assim como informações seguras sobre o aborto e direitos sexuais e reprodutivos.
– A comunicação sobre aborto através de várias linguagens e formas de se expressar. Queremos falar de aborto, mas tentando transformar o sentido negativo com o qual ele sempre vem acompanhado.
Para tratar desse tema também é fundamental que abandonemos a linguagem que domina e descreve os corpos das mulheres como objetos. As mulheres são aquelas que devem ser escutadas e retratadas em sua condição de sujeitas protagonistas na luta pelo aborto, sem culpabilização e depreciação das mulheres.
É importante falar sobre o aborto sempre enquanto experiência das mulheres ao longo da história, desde muito tempo atrás. Vamos falar de aborto sempre que vejamos uma possibilidade para falar em segurança com as amigas, irmãs, vizinhas, tias, mães e conhecidas!
– A solidariedade entre as mulheres, por meio do apoio, da escuta, do respeito às diferentes decisões das mulheres, do compartilhamento de meios para poder acessar nossas escolhas, entre elas a de interromper uma gravidez.
– A liberação do Misoprostol, com o qual se pode realizar o aborto com remédios. A venda nas farmácias, com um preço e acesso justo a todas as mulheres.
A divulgação de informações sobre misoprostol e seu uso adequado, como prevê o direito humano das mulheres à informação e como parte dos direitos sexuais e reprodutivos, que inclui o acesso à informação científica e ética.
– A implementação das Normas Técnicas do Ministério da Saúde, que prevêem o uso do Misoprostol em hospitais (Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento e Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual).
Essa publicação se inspira no direito fundamental à informação, previsto em nossa constituição (art. 5º, CF/88), que também é parte dos direitos sexuais e reprodutivos, previstos em tratados internacionais dos quais o Brasil foi signatário. Foi construída por muitas mãos e experiências das mulheres e defensoras/es de direitos humanos, com base em pesquisas científicas, debates e compartilhamentos durante oficinas e atividades públicas.
As opiniões aqui expressas não refletem as opiniões das autoras das imagens e artes, coletadas e usadas nessa zine.
Escreva para nós: utero.livre@riseup.net
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Fontes de informação que nos inspiram:
COLECTIVO SALUD MUJERES
CONSORCIO LATINOAMERICANO CONTRA EL ABORTO INSEGURO
FLASOG
FONDO MARIA
WOMEN HELP WOMEN
LESBIANAS Y FEMINISTAS POR LA DESCRIMINALIZACIÓN DEL ABORTO
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE
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